Médico do Trabalho avalia os riscos no setor da saúde
Com mais de 30 anos de experiência no ramo hospitalar, o médico do Trabalho Marcelo Pustiglione, formado em 1970 na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, fala sobre a realidade ocupacional no segmento e, particularmente, no Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Ele está lá desde 1980 quando foi fazer um serviço pontual e acabou contratado para estruturar o SESMT do Instituto do Coração, que integra o complexo do HC.
Em 2010 recebeu um desafio ainda maior: a estruturação de um SESMT corporativo envolvendo todos os Institutos do Hospital das Clínicas, do qual tornou-se coordenador. Seu olhar experiente lhe permite críticas importantes à atual NR 32. Ao mesmo tempo, recomenda aos gestores dos estabelecimentos de saúde que atentem para a saúde e segurança de seus profissionais, pois além de ser um ato humano, terão o reconhecimento dos funcionários que trabalharão mais saudáveis, dispostos e focados. "A tendência é o aumento das ações trabalhistas e das multas para quem não cumprir a legislação. A fiscalização está tendo bastante paciência com o serviço de saúde. Já são oito anos de NR 32 e todos os prazos de implantação se esgotaram em 2010. É difícil fechar um hospital, mas multar não é difícil", alerta.
Como está a saúde e segurança nos estabelecimentos de saúde?
Temos observado uma mudança interessante de comportamento. Tradicionalmente os serviços de saúde eram os que menos se preocupavam com a saúde dos seus trabalhadores. Como o objetivo maior era a saúde do paciente, acabavam esquecendo-se da própria saúde. Isso tem relação com a origem da própria profissão de enfermeiro e de médico, muito associadas à questão do sacrifício. O convívio cotidiano com o sofrimento, com a dor, com a morte é frequente. Às vezes convive-se também com um sentimento de impotência na resolução de algumas situações que, por motivos diversos não se tem o recurso para fazê-lo. Essas sensações de perdas frequentes acabam contribuindo para a banalização do risco. Ou seja, eu não enxergo o risco porque ele não existe para mim, eu sou imune a isso. Tem até certo fundo de verdade, porque se você convive no cotidiano com os agentes biológicos acaba de certa forma se tornando mais resistente.
Quando um médico adoece por infecção pode crer que ou ele está imunodeprimido ou o `bicho é muito brabo`. Contra aquele agente do dia a dia, o seu organismo vai criando defesas e tornando-se mais resistente. O profissional de saúde muitas vezes deixa de pressionar de uma forma consistente o gestor para que seja proporcionado a ele melhores condições de trabalho, porque ele também não enxerga isso ou não quer enxergar. Não é sua prioridade. A exceção entre os profissionais da saúde é a enfermagem que há muito tempo se preocupa com os riscos ocupacionais.
A que o senhor atribui este olhar mais atento da enfermagem?
O enfermeiro é o profissional de saúde que tem mais contato com o paciente. É ele que faz os procedimentos iniciais. Mesmo que o médico esteja na porta do pronto-socorro quem atende de imediato é o enfermeiro. E quem vai cuidar do paciente, lavar, limpar, se ele estiver sangrando, se ele vomitou, se ele está com diarreia, enfim, é este profissional. Então, esse cuidado já se tem há muito tempo e justamente por isso é que temos uma prevalência tão baixa de doenças infectocontagiosas no pessoal da enfermagem. Acredito que existe subnotificação na questão dos acidentes, mas, na questão do adoecimento não tem como subnotificar. A pessoa falta ao trabalho, apresenta atestado e este atestado tem uma justificativa, um CID, e a gente não observa nas estatísticas que a origem da maioria dos problemas esteja relacionada a agentes biológicos, mas sim aos problemas ergonômicos e psicossociais.
Quanto à NR 32 como está o cenário hoje? Houve avanços?
Até 2005 pouco ou quase nada do conteúdo das NRs tinha a ver com o trabalho em nossa área de atuação. A que fala um pouco de saúde é a NR 15, mas também nem sei se ela ajuda ou atrapalha da forma como está estruturada. A NR 4, por sua vez, está estruturada em cima de um quadro que não serve para ninguém e para o setor de saúde muito menos. Independentemente do tamanho do estabelecimento ou da quantidade de funcionários exige só uma enfermeira do Trabalho.
O SESMT do HC que cuida de cerca de 17 mil funcionários, para cumprir o exigido no Quadro II da NR 4, precisaria apenas de uma enfermeira do Trabalho. Não dá para fazer. Ele está subdimensionado do ponto de vista quantitativo e qualitativo. Aliás, no universo de saúde não dá para trabalhar, realizar ações preventivas, promover a saúde do trabalhador da saúde se você não tiver profissionais da área psicossocial, que é o pessoal da psicologia, psiquiatria e assistência social. O médico que trabalha sozinho não dá conta disso. Até pode atender e prescrever alguma coisa, mas é necessário ser mais atuante por meio de psicoterapia, de mediações com a chefia e ações de relacionamento de grupo. Uma equipe de saúde mental do trabalho tem que atuar nisso.
Fazer um diagnóstico concreto da situação, ver se a questão é um problema exclusivo do trabalhador, se é um problema de relacionamento com indivíduos, seja com o chefe ou não, ou se é um problema no ambiente de trabalho, e intervir em cada um desses pontos. Para você fazer isso precisa de uma equipe especializada, não dá para atribuir essa carga ao médico do Trabalho. O Quadro II da NR 4 não vê isso, não prevê psicólogos e nem assistentes sociais. É preciso atualizá-lo urgentemente, não dá para você pensar em um SESMT sem esses profissionais. Importante lembrar ainda que os distúrbios ósteomusculares e os transtornos mentais são os principais fatores de afastamento do trabalho somando quase 70% dos afastamentos de longa permanência. Essa é a realidade no Hospital das Clínicas, mas os números não estão muito longe da situação em outros estabelecimentos de saúde. Nenhum dos dois itens está contemplado na NR 32. O risco psicossocial está totalmente ausente e o ergonômico é muito pouco abordado.
Os perfurocortantes foram bastante enfatizados na NR 32 e posteriormente com a publicação de anexo complementar. Como o senhor vê este item?
Quando a gente pensa na questão dos perfurocortantes há dois vieses complicados. O primeiro é que o perfurocortante com exposição a material biológico tem o viés da NR 32 enfatizado na portaria 1.748 de 2011 em seu anexo 3. Não podemos focar apenas no perfurocortante para estabelecer o referido plano de prevenção. Se fizermos isto resolveremos só as exposições a material biológico relacionadas à perfurocortante, que é parte importante, mas há outras exposições acidentais a material biológico, como por exemplo, o respingo. Vamos resolver as exposições por respingo fazendo a gestão do perfurocortante com dispositivo de segurança? Não.
O perfurocortante tem a ver com acidente traumático, já o respingo é a falta do uso de EPI. O contato com o respingo demonstra que o trabalhador não estava usando o mínimo de proteção como os óculos e a máscara. O estudante, o residente até notificam isso, mas, o profissional mais experiente não vai notificar, porque ele será chamado e será repreendido e vai passar vergonha. Outra situação é o acidente com perfurocortante sem exposição a material biológico, mas sim por exposição a outros tipos de substância como os quimioterápicos antineoplásicos.
Fonte Revista Proteção / Agosto 2013